quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Humanidades Médicas e a Reconquista da Educação Liberal

Humanidades Médicas e a Reconquista da Educação Liberal

“O novo bárbaro, atrasado em sua época, arcaico e primitivo em comparação com a terrível atualidade dos seus problemas. Esse novo bárbaro é principalmente o profissional, mais sábio que nunca, porém mais inculto também – o engenheiro, o médico, o advogado, o cientista”.
Ortega y Gasset em A Missão da Universidade


Um colegiado de professores que ensinam as artes liberais recebe a incumbência de justificar o ensino de línguas mortas e de clássicos da literatura em 1828, na Universidade de Yale. Em seu relatório, os professores mostram o que é educação superior, qual a verdadeira missão das artes liberais e sua importância.

Em seu relatório mostram que cabe à Universidade oferecer muito mais que conhecimentos. É necessário treinar a capacidade comunicativa e o exercício da inteligência e da imaginação, amplificadas pelo aprofundamento nos clássicos de nossa civilização.

O papel daquele conhecido à época como tutor, responsável por um grupo pequeno de alunos a quem trata como verdadeiros afilhados, é ressaltado como parte fundamental do verdadeiro esforço formativo. Os antigos tutores eram o que hoje se conhece pelo nome de Mentores. Embora o sentimento seja semelhante, assim como os propósitos, há um elemento radicalmente diferente entre a aprendizagem com mentores no Brasil e a aprendizagem universitária norte-americana, por exemplo. Muitos professores universitários nos Estados Unidos ainda vivem próximos – no mesmo local, para ser mais exato – que seus alunos, e agem como membros da família, apoiando e cobrando resultados. No Brasil não é incomum a figura dos inalcançáveis iluminados, distantes do convívio, desaparecidos atrás dos muros de títulos, diplomas e publicações que os isolam da realidade e do convívio nem sempre pacífico entre as mentes que buscam o conhecimento.

O relatório lembra a respeito do profissional que negligenciou uma formação geral em artes liberais, que:

Caso se destaque em sua profissão, sua ignorância de outros temas e as imperfeições de sua educação estarão ainda mais expostas à observação pública. Por outro lado, aquele que não só é eminente na vida profissional, mas também possui uma mente ricamente abastecida de conhecimentos gerais, tem uma elevação e uma dignidade de caráter que lhe confere uma influência poderosa na sociedade, e uma esfera muitíssimo ampla de utilidade. Sua situação permite-lhe difundir a luz da ciência em meio a todas as classes da comunidade.[1]

Há uma intensa crítica aos que pensam ser o ensino superior destinado a criar o substrato que nutrirá os postos de emprego. Médicos, advogados e teólogos são convocados a desenvolverem seu caráter e sua inteligência antes de mergulhar nos profundos mares da especialização.

Uma educação liberal presta-se a ocupar a mente, na medida em que tem o poder de abrir e alargar; uma educação de formação profissional exige um entendimento já cultivado pelo estudo e preparado pela prática para esforços metódicos e perseverantes.[2]

No Brasil, adolescentes caem direto na Medicina, por exemplo, com um preparo prévio que os padronizou para um teste – o vestibular ou o ENEM. Seu conhecimento literário baseia-se em pobres resumos de apostilas superficiais. Sua vivência resume-se ao convívio de familiares e amigos da mesma idade, longe dos desafios de uma sociedade complexa na grande maioria das vezes. Suas opiniões, de regra, reproduzem as doutrinas e as figuras de linguagem destiladas pela elite midiática e intelectual numa marmita pop. O amadurecimento nem sempre vem rápido, e os jovens estudantes de medicina encontram-se, de repente, frente a pacientes que sofrem, morrem e assustam.
Ter um preparo humanístico não somente capacitaria o jovem a desfrutar mais de sua profissão e da sociedade, mas também prepararia para que fosse um guardião do que há de melhor em uma determinada cultura.

Diminua-se o valor de uma educação acadêmica, e a difusão de conhecimento entre as pessoas cessaria, o nível geral de valor intelectual e moral cairia, e nossa liberdade civil e religiosa seria colocada em risco por causa da desqualificação última de nossos cidadãos para o exercício do privilégio da democracia.[3]

Qualquer comparação fácil com o Brasil de hoje não é mera coincidência. Nossas escolas de regra entendem que devem educar para a profissão, mas raramente se colocam como educadoras para a vida. O analfabetismo funcional que abunda no ensino superior brasileiro não é coincidência.

Verdade seja dita, a educação liberal é para uma elite moral e intelectual[4], enquanto que uma visão puramente profissionalizante da educação prepara o perfeito escravo, incapaz de participar do diálogo universal que atravessa eras e nações.

O ensino das Humanidades Médicas, nesse contexto, é uma tentativa tardia, porém ainda possível, de reconquistar o legado cultural que nos foi negado. É a chance de tornar-se um profissional ou um cidadão mais íntegro.


Hélio Angotti Neto
Médico Oftalmologista pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia, Coordenador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina, Coordenador do Curso de Medicina do UNESC, Colunista do Academia Médica, Autor do Livro “A Morte da Medicina”. Global Scholar em 2016 no Center for Bioethics and Human Dignity.




[1] A Educação Superior e o Resgate Intelectual: O Relatório de Yale de 1828. Campinas, SP: Vide Editorial, 2016, p. 58.
[2] Ibid., p.102.
[3] Ibid., p. 161-162.
[4] O fato de que brasileiros em geral entendem a palavra “elite” ligada a dinheiro só reforça a degeneração cultural e moral que sofremos.