sábado, 22 de outubro de 2016

O SEFAM E A TRILHA DA FILOSOFIA

O SEFAM E A TRILHA DA FILOSOFIA


Começo a leitura de "O que é Filosofia" de José Ortega y Gasset, traduzido por Felipe Denardi e publicado pela Vide Editorial. Percebo na versão em português o estilo marcante da escrita de Ortega, assim como permanece nessa obra o convite à reflexão característica de outras leituras, tais como "A Rebelião das Massas".
Já no primeiro capítulo noto pontos de contato que aprofundam a reflexão acerca do que se procura obter no Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina:
"(...) a meditação sobre um tema qualquer, quando é positiva e autêntica, inevitavelmente aparta o meditador da opinião recebida do ambiente, da que, com razões mais graves do que vocês supõem agora, merece ser chamada de 'opinião pública' ou 'vulgaridade'. Todo esforço intelectual que o seja a rigor nos aparta, solitários, da costa comum e, por rotas recônditas que nosso esforço descobre precisamente, nos conduz a lugares remotos, colocando-nos sobre pensamentos insólitos."(1)
A ousadia de iniciar um pensamento independente levou o SEFAM a buscar as raízes da ética e da medicina nos originais do passado e a repensar as críticas destrutivas que hoje são feitas na Academia contra o legado hipocrático e o médico tradicional por vozes que se destacam mundialmente no campo da bioética. Antes de "tomar a caneta" e escrever a primeira página, foram mais de dez anos de estudo, reflexão e de constatações - às vezes surpreendentes - de como tantas coisas deixaram de ser ditas com precisão e verdade.

Além disso, como diria o Filósofo Olavo de Carvalho, estudar e aprender é adquirir consciência de algo que outro não sabe, um elemento que potencializa muitas vezes a solidão e exige vigor extra para caminhar cada vez mais os caminhos poucos trilhados e distantes. Fato que não está isento de certos riscos e desvios, obviamente.
"Os grandes problemas filosóficos requerem uma tática similar à que os hebreus empregaram para tomar Jericó e suas rosas íntimas: sem ataque direto, circulando em torno lentamente, apertando a curva cada vez mais e mantendo vivo no ar o som de trombetas dramáticas. No cerco das idéias, a melodia dramática consiste em manter sempre desperta a consciência dos problemas, que são o drama ideal."(2)
No estudo das Humanidades Médicas e da Bioética, examinei problemas e fundamentos durante anos, às vezes perplexo, às vezes decidido e focalizado, sempre aberto à descoberta, em posse daquele estado de dúvida que difere em muito do ceticismo vulgar. Muitas conclusões foram trocadas, e muitos conhecimentos foram ampliados. Novamente cito Olavo de Carvalho, ao afirmar que o intelectual precisa se acostumar com o estado da dúvida, precisa de ter fibra para aguentar as diversas tensões que ameaçam cindir sua opinião - e tantas vezes realmente a cindem.
Por fim, no estudo das Humanidades Médicas, busquei a compreensão dos antigos, de quem muitos contemporâneos tanto falam mal. Descobri que seria impossível ser empático com um paciente hoje se não somos capazes de empatia verdadeira com um distante "amigo" do passado. Essa foi uma lição aprendida com um grande amigo e mestre: Ricardo da Costa.

"O pressuposto mínimo da história é que o sujeito de quem ela fala possa ser entendido. No entanto, não se pode entender senão o que possua alguma dimensão de verdade. Um erro absoluto não nos pareceria um erro, porque nem sequer o entenderíamos. O pressuposto profundo da história é, portanto, o completo oposto de um relativismo radical. Quando vai estudar o homem primitivo, supõe que sua cultura tenha sentido a verdade e, se tinha, continua tendo. Como, se à primeira vista, nos parece tão absurdo tudo o que aquelas criaturas fazem ou pensam? A história é exatamente a segunda vista, que consegue encontrar a razão da aparente sem-razão.
De acordo com isso, a história não é propriamente história, não cumpre sua missão constitutiva se não chega a entender o homem de uma época, seja ela qual for, incluindo a mais primitiva. Mas não se pode entendê-lo se o próprio homem dessa época não leva uma vida com sentido, portanto, se o que pensa e faz não tem uma estrutura racional. Desse modo a história se compromete a justificar todos os tempos, e se torna o contrário do que de início ameaçava ser: ao nos mostrar a variabilidade das opiniões humanas, parece nos condenar ao relativismo; mas como dá um sentido plenário a cada posição relativa do homem e descobre a verdade eterna que cada tempo viveu, supera radicalmente o que há de incompatível no relativismo com a fé num destino trans-relativo e como que eterno no homem."(3)
Cito também alguns trechos do livro "O que é Conservadorismo" de Roger Scruton, que guardam notáveis paralelos com os objetivos do SEFAM e demonstram duas características básicas:

"Da mesma forma, as pessoas vão obter educação somente se elas a desejarem por seu próprio fim, mas conseguirão bem mais do que isso. Elas vão adquirir a habilidade de se comunicar, de persuadir, de atrair e de dominar. Em qualquer arranjo social, tais capacidades serão vantagens, mas a educação nunca pode ser buscada somente como meios para elas, mesmo se são sua consequência natural." (4)
A segunda é a percepção de que o SEFAM é sim um empreendimento elitista no sentido intelectual e moral, ou pelo menos almeja ser, com sinceridade. E oferece uma oportunidade singular e bem desigual para os que buscam as Humanidades Médicas, pois, como diria Roger Scruton, de forma irônica:
"A menos que tomemos as crianças de suas mães e cuidemos delas em granjas, a 'desigualdade de oportunidade' não poderia ser erradicada. E mesmo assim sua total total erradicação dependeria da remoção de uma parte do conhecimento natural da criança, digamos, sujeitando seu crânio a uma série de golpes repetitivos de martelo ou removendo porções de seu cérebro." (5)
Sem dúvida nenhuma o objetivo do SEFAM é que os participantes sejam o mais diferente possível do meio que os circunda, e ainda mais diferentes entre si, partindo de um legado cultural comum que possibilitará alçar maiores vôos independentes. É uma oportunidade extremamente desigual, felizmente, e jamais poderia ser imposta.

Hélio Angotti Neto

(1) ORTEGA Y GASSET, José. O que é Filosofia? Campinas: VIDE Editorial, 2016, p. 15.
(2) Ibidem, p. 17.
(3) Ibidem, p. 26.
(4) SCRUTON, Roger. O Que É Conservadorismo. São Paulo: É Realizações, 2015.
(5) Ibidem.