domingo, 14 de agosto de 2016

Uma Ponte para o Futuro Direto do Passado

A Obra de Van Rensselaer Potter




Recentemente, foi publicada em português a obra primordial da Bioética escrita pelo biólogo e bioquímico pesquisador em oncologia Van Rensselaer Potter pela Editora Loyola, com a tradução de Diego Carlos Zanella e uma introdução à edição brasileira escrita pelo padre Leo Pessini, importante ator da Bioética no Brasil e no mundo. Era uma obra que o mercado brasileiro necessitava há tempos por muitos motivos.

Citado por muitos e lido, talvez, por poucos, o livro sempre foi mencionado como excelente fonte dos primórdios da Bioética. É uma pedra fundamental nesse campo interdisciplinar de estudo que ajuda sobremaneira a compreender os rumos da discussão acadêmica mundo afora e no Brasil.

Potter instaura a Bioética numa perspectiva global, incluindo questões acerca da sobrevivência humana na biosfera, ecologia, crescimento populacional, responsabilidade no ambiente científico e perigos dos avanços tecnológicos. A Bioética Clínica, instaurada quase que simultaneamente por Hellegers, tratou, desde os primórdios, de questões semelhantes, porém mais restritas à assistência à saúde no contexto dos avanços tecnológicos e dos novos desafios à moralidade de médicos, pacientes e demais envolvidos.

As temáticas de Potter ainda hoje são lugares comuns na discussão bioética: responsabilidade frente às próximas gerações, valores laicos e religiosos em sociedade, controle populacional, preservação da natureza, excesso de especialização na ciência, incapacidade de lidar com as questões maiores da sociedade e individualismo.

Potter exemplifica bem o que Yuval Levin explicou em seu livro recente (Imagining the Future: Science and American Democracy): indivíduos com tendências à esquerda do espectro político (no sentido denominado progressista e liberal) estão agindo de forma conservadora quando o assunto envolve desenvolvimento tecnológico e proteção da natureza.

Outro aspecto muito curioso e ilustrativo da realidade dos ambientes de discussão em Bioética são os contrastes exemplificados pelo próprio autor em sua obra. Um secularista mecanicista que promove - com certa competência, devo dizer - um reducionismo do ser humano ao status de máquina cibernética, trazendo o aporte de vários achados científicos interpretados sob um paradigma naturalista bem específico. Ao mesmo tempo, não descuida da cultura circundante, fazendo referências contínuas a trechos das escrituras, mesmo que para anunciar placidamente que perderam sua validade nos dias de hoje. A Bioética ainda é um campo de ferrenhos duelos entre o secularismo e as outras crenças, inclusive as religiosas; todos partilhando ao menos a disposição em conversar, mesmo que com ânimos acirrados algumas vezes.

E, talvez, algo ainda mais curioso: Potter é profundamente moralista, embora subscreva a cosmovisão naturalista e mecanicista. Há uma tensão incontornável entre tais visões, à beira do abismo niilista. Não duvido por um momento sequer da sinceridade do autor em recomendar aquilo que realmente julgava certo, mas ele descartou a fé alheia com muita facilidade e evitou regressar aos seus pressupostos mais básicos. Tal regresso às fundações de suas crenças, filosófico e anamnésico ao mesmo tempo, o levaria ao terrível choque entre o naturalismo e a necessidade de pregar moralmente.

De fato, o livro de Potter é uma ponte para o futuro. Lá estão prenunciados os conflitos de hoje na Bioética. Lá já se defendia a existência daquele engenheiro social (bioeticista) que contornaria a visão super especializada de suas pesquisas cada vez mais avançadas e cada vez mais distantes do cotidiano e da aplicabilidade prática para pregar uma nova moral de uma nova fé.

Se os termos parecem exagerados, o leitor me desculpará ao ler o Credo Bioético oferecido pelo autor, com suas crenças e compromissos. E compreenderá melhor o papel central desse pequeno livro no cenário internacional que hoje se vê.

Sem dúvida nenhuma essa obra chega tarde, mas melhor agora do que nunca. Parabéns à Loyola e aos envolvidos pelo trabalho bem realizado e por trazer esse importante pedaço do quebra-cabeça chamado Bioética para a língua portuguesa.




Prof. Dr. Hélio Angotti Neto


Médico Oftalmologista pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia. Doutor em Ciências Médicas pela USP. Coordenador do Curso de Medicina e Membro do Comitê de Ética em Pesquisa do UNESC. Visiting Scholar do Center for Bioethics and Human Dignity em 2016. Criador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina (SEFAM).