quinta-feira, 4 de agosto de 2016

BIBLIOGRAFIA EM BIOÉTICA - MAPEANDO O INÍCIO DA JORNADA

Muitos perguntam quais livros são bons para começarem os estudos em Bioética.

A pergunta é relevante. Para quem realmente quer entender de qualquer assunto com qualidade, o levantamento bibliográfico prévio economizará anos de estudos pouco direcionados e auxiliará a fundamentar um posicionamento ou entender melhor o contexto de algum autor de grande importância na área.

Para começo de conversa, já respondo que qualquer embasamento interdisciplinar demorará alguns anos para acontecer com qualidade. Portanto, acumule paciência e comece a ler e estudar sem o compromisso de terminar tão cedo.

Edmund Pellegrino, o "Pai" da Ética Médica contemporânea.

Prepare-se também para navegar em mares nunca antes navegados (por você, pelo menos)! Nas palavras de Edmund Pellegrino, pai da ética médica contemporânea, é necessário saber Humanidades Médicas e Filosofia da Medicina se alguém quiser conhecer a Bioética. Estamos falando de literatura, história, filosofia (geral e especializada), retórica, lógica, política e muitas outras áreas.

Diante da necessidade de criar um referencial teórico mínimo aceitável, temos que nos perguntar algumas coisas extremamente importantes.

1. Qual o tipo de leitura?

Qual o tipo de livro que temos diante de nós? É um livro de conteúdo inspiracional e formativo? Um livro que molda nosso caráter e nossa perspectiva de mundo e nos inspira a melhorar? Ou é um livro de conteúdo informativo, que nos oferece material para raciocinar e argumentar? Outra categoria que não tratarei seria a do livro lúdico, que simplesmente nos diverte sem oferecer conteúdo útil ou nobre.[1]
Uma leitura formativa ou inspiracional pode ser repetida várias vezes durante uma vida, cada vez oferecendo uma nova perspectiva, cada vez mostrando-se mais complexa quanto mais complexos nós nos tornamos.

Já uma leitura informativa, deve ser lida uma vez para que se tenha noção de onde buscar informação relevante, e consultada novamente quando necessário.

2. Qual o foco?

Quando iniciamos um curso formal de bioética ou humanidades médicas, o foco é adquirir o básico de uma formação geral na área, pretensamente capaz de lançar o estudioso no campo de pesquisa com o mínimo de ferramentas necessárias para a argumentação e progressão nos estudos.

Embora a aproximação sistemática tenha suas inegáveis vantagens, é difícil compará-la com o ímpeto e a vitalidade de um estudo baseado em problemas, no qual iniciamos nossas leituras com base em um tópico de extrema relevância para nossas vidas, e que atrai intensamente nossa atenção.

Uma mistura saudável entre ambas as ênfases é interessante. Quantos tesouros eu não descobri ao ler materiais que não estavam diretamente relacionados a um problema que eu pesquisava?

3. Por quanto tempo?

Esta resposta é simples. Até o fim da vida.

Cada dia aprende-se algo, cada dia nós revisamos nossas perspectivas, para reforçá-las ou para colocá-las em cheque. Um estudioso dedicado saberá suportar anos de dúvidas e buscas.

Se não há fibra para aguentar a aporte de diferentes perspectivas e a vontade de harmonizá-las, não se deve arriscar uma vida intelectual, ainda mais em Bioética.

Se não há força de caráter para defender o que se mostrou verdadeiro e correto apesar das circunstâncias e da pressão externa, não se tem moral para ingressar na vida intelectual.

4. Quais as obras?

Esta é a pergunta fácil de responder. Isto não faz com que a resposta deixe de ser inquietante.

Estamos diante de um campo interdisciplinar que mistura humanidades e ciências. Portanto, a lista é enorme e variadíssima!

Se alguém deseja falar algo em Bioética, o mínimo que se espera é uma formação humanística de qualidade, incluindo os clássicos da literatura e da filosofia mundial, ao lado de uma formação científica atualizada.

Quando se trata de Bioética, aborda-se o fenômeno da vida humana e de tudo que a motiva e enriquece, fala-se das grandes religiões e do sentido da vida, lembra-se das mais comoventes histórias da humanidade e busca-se a Alta Cultura. Exigir um pouco menos do que isso já é destruir com a mediocrização todo um projeto de estudo.

5. A Formação do Imaginário

Começarei pelas grandes obras poéticas, conforme a classificação aristotélica formulada por Olavo de Carvalho.[2] São estas as mais importantes obras que fundamentam nosso imaginário e dão sustentação aos estudos mais complexos e avançados.

Hans Jonas, um dos defensores da Responsabilidade em Bioética.

Hans Jonas aconselha em um de seus livros que, para pensar e agir com responsabilidade em Bioética, era preciso muita imaginação.[3] E a imaginação bem formada requer a fundação oferecida pelos clássicos da religião e da literatura, além do aporte opcional de bons filmes.

A pedra fundamental para qualquer um que vive na cultura ocidental, em acordo ou discórdia, é a Bíblia. Não há nem discussão neste ponto. Para abrir a boca e falar qualquer coisa, o mínimo do mínimo é ter conhecimento das histórias fundamentais de nossa civilização.

Hoje, qualquer adolescente imberbe crê ser capaz de criticar milhares de anos de sabedoria e cultura acumulada. É preciso entender que essa ilusão é incapaz de sustentar uma verdadeira vida de estudos.

Nietzsche, por exemplo, foi um grande crítico da cultura ocidental e cristã. Porém, foi profundo conhecedor daquilo que criticava. Outro exemplo é Rensselaer Van Potter, autor do primeiro livro de Bioética do mundo, que afirmou ser um naturalista mecanicista, mas que utilizou explicitamente alguns versículos bíblicos das cartas apostólicas e dos salmos para argumentar em sua obra fundamental. As Escrituras, ao lado dos gregos antigos e dos romanos, são simplesmente as pedras que sustentam toda nossa cultura.

Na Bíblia estão os dilemas existenciais que assolam ou elevam a humanidade. Guerras, milagres, esperança, desespero, doença, cura, fé, salvação e perdição. Está tudo lá. A emotividade dos Salmos, o existencialismo de Eclesiastes, o exemplo do Cristo e as descrições fenomenológicas da intimidade angustiada do apóstolo. Num campo onde se discute o certo e o errado, a Bíblia fornece instrumentos narrativos que povoam o imaginário e potencializam a compreensão do ser humano.

Nesta hora normalmente alguém se ergue quase ultrajado e diz: e as outras religiões, e o pluralismo, e os ateus? De que adianta buscar pluralismo sem antes possuir integralmente alguma das perspectivas? De que adianta buscar uma posição crítica contra uma perspectiva a qual realmente não se conhece? Desenraizado de uma Alta Cultura, só restará a superficialidade e a arrogância daquele que ignora, só restará a impostura.

E nem preciso comentar o valor da Teologia no campo da Bioética!

Autores necessários para compreender parâmetros morais e perspectivas ocidentais incluem Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino, este último dissertando sobre virtudes e vícios. Recentemente, é impossível não recomendar obras de intelectuais como Francis Schaeffer e de grandes lideranças religiosas como João Paulo II e Bento XVI. Teólogos contemporâneos estão por todos os lados em Bioética, desde o brasileiro Leocir Pessini ao americano Gilbert Meinlander, importante membro da comissão presidencial de Bioética dos Estados Unidos. Religião e Bioética definitivamente se misturam e se discutem.

Na literatura clássica, temos os livros que marcaram nossa civilização. A poesia de Homero, tragédias gregas escritas por Sófocles e diálogos escritos por Platão abordam dúvidas existenciais, noções de justiça e convivência em sociedade. Romances como “A Morte de Ivan Illitch”, de Tolstói, nos ensinam quais são as fases psicológicas enfrentadas por alguém que se aproxima da morte, tomado por uma grave doença. Romances mais modernos como “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, e “1984”, de George Orwell, nos mostram projeções de sociedades futuras baseadas nos possíveis desenvolvimentos de tecnologias e ideologias da época. Até mesmo um conto de terror, como “Frankestein”, de Mary Shelley, pode nos educar quanto a visões tenebrosas do ímpeto prometeico frente ao desenvolvimento científico e às altas expectativas de sucesso na manipulação da natureza.

Viktor Frankl, Psiquiatra Judeu sobrevivente de campos de concentração nazistas.

Nos relatos de nossa época, encontramos também biografias e estudos perturbadores que demonstram o caminho que podemos trilhar ao esquecer os nossos valores civilizacionais. “Em Busca de Sentido”, escrito pelo médico Viktor Frankl, mostra a existência dentro de um campo de concentração nazista, e contextualiza os grandes crimes que marcaram o nascimento da Bioética contemporânea.

Para desenvolver a empatia e a compreensão de nossos idosos, sempre envolvidos em debates Bioéticos quando se fala sobre utilitarismo e valor da vida humana, sugiro “O Velho e o Mar”, de Hemingway. E, por que não, “Rei Lear”, de Shakespeare?

Crônicas interessantes e relatos de médicos nos momentos mais dramáticos da existência humana são capazes de sensibilizar o mais árido coração. “Sinto Muito”, do médico português Nuno Lobo Antunes, “Mortais” de Atul Gawande e “O Médico”, de Rubem Alves, são bons exemplos.

6. A História

Fala-se muita besteira a respeito de Hipócrates. Muitos acusam ou elogiam sem nunca ter lido uma obra hipocrática sequer. Alguns acham realmente que a discussão ética nasceu com a bioética – gosto de pensar que estes são poucos, mas tenho a forte impressão de que são Legião!

Julgo que as obras hipocráticas e galênicas são indispensáveis, todas elas.

Visões gerais do passado e da validade dos fundadores da ética médica podem ser obtidas em grandes historiadores modernos e contemporâneos como Ludwig Edelstein, Owsei Temkin, Albert Jonsen, Allasdair McIntyre e Gary Ferngren. Em sua obra Fundamentos de Bioética, Diego Gracia também apresenta um panorama histórico e filosófico valioso.

Diego Gracia, discípulo do filósofo espanhol Xavier Zubiri. Filósofo e Médico.

Aproveito também para falar das línguas necessárias. O mínimo que se espera de um estudioso brasileiro da Bioética é o conhecimento de inglês, português e espanhol, além de uma boa disposição em aprender algo de grego e latim, se ousar passear pela história. Ler em espanhol a obra de Diego Gracia - aprendiz de Xavier Zubiri, médico da Real Academia Espanhola de Medicina e um dos maiores bioeticistas vivos do mundo - é elemento obrigatório. O espanhol também possibilitará a leitura de outros gigantes das Humanidades Médicas como Pedro Laín-Entralgo.

7. Os Fundamentos

Um volume básico e geral é “Para Fundamentar a Bioética” de Ferrer, que mostra uma visão bem geral deste amplo campo de estudo.

Na área específica de Filosofia da Medicina, uma boa introdução é o livro escrito pelo meu amigo James Marcum, da Baylor University: “Humanizing Modern Medicine: An Introductory philosophy of medicine”. Marcum aprendeu diretamente de dois grandes intelectuais: Bernard Lonergan e Thomas Kuhn.

Além da obra já citada de Diego Gracia, de grande valor para o estudo da história e dos fundamentos da Bioética, cabe lembrar dos livros fundamentais de cada escola de pensamento. “Fundamentos de Bioética” de Tristram Engelhardt e “Fundamentos de Bioética Cristã Ortodoxa”, do mesmo autor, são obras básicas, assim como a “bíblia” do Principialismo, “Princípios de Ética Biomédica”, de Beauchamp e Childress. A escola baseada em Virtudes conta com as obras do pai da Ética Médica contemporânea, o saudoso Edmund Pellegrino: “For the Patient’s Good”, “The Virtues in Medical Practice” e “The Christian Virtues in Medical Practice”. A escola personalista dos católicos é bem representada no Brasil pela obra em dois volumes do Cardeal Elio Sgreccia, “Manual de Bioética”, e encontram-se diversos outros livros escritos também por autores protestantes que lançam fundamentos éticos nas questões ligadas à vida humana, como o livro Ética Cristã de Norman Geisler e a série Bioética, publicada pela Editora Cultura Cristã.

Na categoria curiosidade histórica, recomendo o livro “Bridge to the Future”, o primeiro livro de Bioética do mundo - muito citado e pouco lido - escrito por Van Renselaer Potter. Como foi lançado pela Loyola recentemente, deverá ser lido por muitos daqueles que sempre o elogiaram de ouvir falar.

Uma necessidade negligenciada por muitos, é beber nas melhores fontes de nossa Alta Cultura. Lembro até hoje das palavras que ouvi do médico-filósofo Diego Gracia num Congresso Brasileiro de Bioética: “o melhor livro de bioética do mundo foi escrito há tempos, por Aristóteles. É Ética a Nicômaco.” Não diria que é o melhor, mas que é indispensável. Como eu esperava, alguns riram de forma rude do convidado estrangeiro, mostrando o pior lado do ódio que uma fração expressiva de nosso povo nutre à inteligência e à cultura.

8. A Biopolítica

Bioética e política estão ligadas profundamente. Não se trata de bioética sem as devidas considerações políticas, jamais.

Fundamentos do pensamento político incluem “A República”, de Platão; “Política”, de Aristóteles; “Arte da Guerra”, de Sun Tzu; “O Príncipe”, de Maquiavel, ao lado da crítica demolidora escrita por Olavo de Carvalho, de quem eu recomendo também “A Nova era e a Revolução Cultural”, “Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão” (na verdade escrito por Schopenhauer e anotado por Olavo de Carvalho), “O Mínimo que Você Precisa Saber Para Não Ser um Idiota”, “Os Estados Unidos e a Nova Ordem Mundial” e toda a série de comentários políticos, filosóficos e culturais publicada pela Vide. Do ponto de vista psiquiátrico e estratégico, recomendo especialmente a obra de Andrew Lobacewski, “Ponerologia Política”, e a obra de Heitor de Paola, “Eixo do Mal Latino-Americano”, esta última mais estratégica do que psiquiátrica, embora também tenha sido escrita por um especialista da área.

Algumas obras que ajudam a contextualizar os conflitos ideológicos globais e entender as bases do pensamento político, estratégico e econômico que interferem sem parar na Bioética são: “Política da Prudência”, de Russel Kirk; “O Que é Conservadorismo”, de Roger Scruton; “Rules for Radicals”, de Saul Alinski; “Estratégia e Hegemonia Socialista”, de Ernesto Laclau, etc.

Um autor que ainda é pouco conhecido na Academia brasileira é Eric Voegelin, que trata de história e política com maestria, e que oferece uma nova forma de avaliar e julgar a cultura e a política. Visões de grande interesse e relevância incluem também os escritores romenos Vladimir Tismaneanu e Gabriel Liiceanu, com seus relatos e estudos assustadores do potencial destrutivo do ser humano e das suas distopias.

Na política externa, tão importante quanto à política interna, para compreender o Brasil, sugiro as obras e escritos de Paulo Roberto de Almeida, um diplomata na linha tradicional de excelência do Itamaraty, da época anterior ao desmanche feito pelo Partido dos Trabalhadores e que agora retorna com o devido reconhecimento ao Instituto Rio Branco.

9. Estudo de acordo com problemas

E enquanto se adquire a fundação que permitirá crescer em conhecimento, deve-se estudar muito conteúdo relacionado ao seu interesse específico. Aborto, Transumanismo, Eugenia, Clonagem, Ética Profissional e Corporativismo, Questões de Autonomia do Paciente, Religião e Saúde, Saúde Pública e o que mais interessar.

Comece elaborando uma abrangente e extensa bibliografia, sabendo de cada obra o autor, quando foi escrita, o principal tema tratado e as conclusões. E leia, mesmo que pouco, todos os dias.

Uma excelente para quem deseja encontrar uma bibliografia prévia dividida por assuntos é o portal do Center for Bioethics and Human Dignity, que oferece uma diversificada e valiosa lista de fontes bibliográficas divididas por assuntos de interesse. Navegue em https://cbhd.org/category/bibliography e descubra por si mesmo!

E, obviamente, nada substitui uma visita à biblioteca de um centro de estudos ou à biblioteca privada de um grande estudioso.

Para manter-se informado nos mais diversos temas, um recurso importante é o portal de notícias bioéticas, www.bioethics.com, também organizado pelo Center for Bioethics and Human Dignity. Creio ser um dos mais atualizados centros de notícias da área.

10. Periódicos

Além de livros e portais especializados em Bioética, há que se buscar as fontes de artigos de maior qualidade no mundo. Alguns dos melhores periódicos seriam os seguintes: Hastings Report, Kennedy Isntitute of Ethics Journal, American Journal of Bioethics e Journal of Medicine and Philosophy. Há muitos outros, específicos para temas como Neuroética, Comitês de Ética em Pesquisa etc.

11. Meta-Estudo

Há livros e cursos que tratam especialmente de como estudar e de como desenvolver uma vida intelectual. Recomendo “A Vida Intelectual”, de Sertilanges; “Como Ler Livros”, de Mortimer Adler; e cursos ministrados por Olavo de Carvalho incluindo: “Como tornar-se um Leitor Inteligente”, “Introdução ao Método Filosófico” e “As Bases da Auto-Educação”.

Em relação ao volume de estudo, uma expectativa adequada seria a de ler pelo menos uns cinquenta livros por ano. Algo bem razoável para atingir um padrão minimamente adequado em cerca de dez anos de estudo.

E antes que alguém comece a achar que a lista está muito grande, é necessário saber que o volume de publicações em Bioética aumenta vertiginosamente a cada ano. Portanto, mãos à obra!

Prof. Dr. Hélio Angotti Neto é Coordenador do Curso de Medicina do UNESC, Diretor da Mirabilia Medicinæ (Revista internacional em Humanidades Médicas), Membro da Comissão de Ensino Médico do CRM-ES, Visiting Scholar da Global Bioethics Education Initiative do Center for Bioethics and Human Dignity em 2016, Membro do Comitê de Ética em Pesquisa do UNESC e criador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina (SEFAM).





[1] SERTILLANGES, Antonin-Dalmace. A Vida Intelectual: Seu espírito, suas condições, seus métodos. São Paulo: É Realizações, 2010.
[2] CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos. Campinas, SP: VIDE Editorial, 2014.
[3] JONAS, Hans. Técnica, Medicina e Ética. Sobre a Prática do Princípio Responsabilidade. São Paulo: Paulus, 2013.