quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Formando um Bom Médico - O Ensino das Virtudes Médicas

* Texto publicado originalmente no "Academia Médica" em 15/10/2014. 
http://academiamedica.com.br/virtudes-da-medicina-como-formar-um-bom-medico/ 

Prof. Dr. Edmund D. Pellegrino


Como formar um bom médico? Como educar para ser uma boa pessoa e, consequentemente, um bom médico? Não seria pretensioso ousar educar para o certo, para a virtude?

Nos dias contemporâneos, o discurso que se intitula “inteligente” está normalmente ancorado num relativismo que o puxa sempre para baixo, rumo ao lodo da incompreensibilidade e da mediocridade. Não se ousa falar a verdade e instigar a busca pelo que é certo. Quando muito, se ensina um apego à crítica desmedida, destrutiva e pouco sábia feita pelos estúpidos, isto é, os ignorantes e arrogantes[1].
Mas na Medicina não há opção. Não há Medicina moralmente neutra. Aliás, como alguns pensadores de boa estirpe já anunciaram[2], não há nada que envolva a ação humana, incluída a ciência, que não envolva a moralidade.

Mas se algo precisa ser feito, como ensinar a ser um bom médico?

Platão já testava possíveis respostas há tempos, e a pergunta que fazemos se repete desde seu diálogo Mênon[3]: Como ensinar a Virtude? Não a virtude maquiavélica[4], que nada mais é do que uma distorção verbal cujo real significado seria força e iniciativa impetuosa. Isso não é a virtude como era entendida pelos antigos e nem a virtude de que precisamos na Medicina.

Gosto de ressaltar com meus alunos que uma preciosa vivência é trazida de casa. Mas, para ser médico, é necessário aprender mais e fazer mais do que se já tem.

É inegável o valor do exemplo dos bons mestres. Professores que encarnam o papel do médico - do verdadeiro médico - e inspiram seus alunos a buscar a virtude junto ao paciente. Porém também é inegável que existem os maus exemplos, também presentes dentro das escolas médicas. E o exemplo somente não é um fator determinante, pois o mau exemplo pode servir como contraexemplo dialético para um bom acadêmico, e um bom professor pode ser ignorado completamente por um mau acadêmico.

Um código deontológico adequado ajuda na medida em que traduz expectativas éticas em proposições passíveis de julgamento racional. Mas o compromisso de ser médico é muito mais do que assumir um corpo de regras externas, é um compromisso interno, assim como é interna a conversão dos religiosos. Há uma conversão do jovem acadêmico em médico, muitas vezes gradual e lenta, muitas vezes súbita.

Outro recurso capaz de auxiliar na busca da virtude é a aprendizagem de exemplos clínicos junto a professores mais experientes que possam traduzir as vivências morais em cada situação para o acadêmico e demonstrar quais seriam as atitudes desejáveis para a formação de um bom médico. Este estudo das virtudes e atitudes necessárias, junto a um bom professor de Ética Médica e Bioética, pode colaborar sobremaneira na formação médica.

Nessa linha temos Edmund Pellegrino que, ao lado do exemplo de vida, também sistematizou toda sua obra ao redor da formação de médicos virtuosos e do estabelecimento de uma Filosofia Moral adequada e especifica para as profissões que cuidam da saúde do ser humano, em especial da Medicina[5].

Sua obra publicada em livros não encontra nenhuma tradução ainda no Brasil, falha gravíssima que o Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina (SEFAM) começa a remediar. Em geral, sua obra também não encontra penetração nos cursos de Medicina, sendo mais discutida em alguns círculos de estudos bioéticos mais capacitados e avançados. Não há como duvidar da excelência dos centros de formação médica em diversos lugares do Brasil, mas em termos éticos, nossas publicações ignoram aqueles que muitos chamam de o “Pai da Ética Médica Moderna”.

Mas, respondendo às perguntas iniciais, é possível sim formar um bom médico, embora a vontade do indivíduo em formação seja elemento indispensável, obviamente[6]. Os métodos são diversos e, compreendendo a complexidade do ser humano, todas as aproximações são desejáveis em conjunto: bons professores como modelos, casos clínicos comentados, estudo deontológico e estudo da Ética Médica e da Bioética com qualidade. 

Uma vez possível a educação, mesmo que não garantida, jamais seria pretensiosa, mas sim, torna-se obrigação para a Escola Médica, um importante agente moral da sociedade em que está plantada.
Em breve, detalharei as principais virtudes conforme exposição feita por Edmund Pellegrino.


Prof. Dr. Hélio Angotti Neto
Doutorado em Ciências Médicas pela FMUSP
Médico Oftalmologista pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia
Coordenador do Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina – SEFAM
Coordenador do Curso de Medicina do Centro Universitário do Espírito Santo – UNESC
Diretor Editorial da Mirabilia Medicinae, revista especializada em Humanidades Médicas



[1] Na verdade todo discurso que prega o relativismo forte não passa de uma expressão arbitrária e intolerante. O fato de que muitas mentes ainda se deixam levar pelas peripécias exageradas de alguns céticos e cínicos é um indicativo do estado deprimente de nossos tempos.

[2] JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro, RJ: Editora PUC Rio & Contraponto: 2011. JONAS, Hans. Técnica, Medicina e Ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. São Paulo, SP: Paulus, 2013.

[3] PLATÃO. Mênon. Rio de Janeiro, RJ: Editora PUC Rio & Edições Loyola: 2009.

[4] MAQUIAVEL, Nicolau. Penguin Companhia: Clássicos. O Príncipe. São Paulo, SP: Editora Shwarcz, 2010. CARVALHO, Olavo de. Maquiavel ou a Confusão Demoníaca. Campinas, SP: Vide Editorial, 2011.

[5] PELLEGRINO, Edmund D. & THOMASMA, David C. The Virtues in Medical Practice. New York: Oxford University Press, 1993. PELLEGRINO, Edmund D. & THOMASMA, David C. Christian Virtues in Medical Practice. Washington, DC: Georgetown University Press, 1996.

[6] Não há um José Monir Nasser ou um Reuven Feuerstein que eduque alguém que não quer aprender. Ambos foram grandes educadores que, infelizmente, faleceram há pouco tempo. Um brasileiro e outro israelense, ambos praticamente desconhecidos nestas terras onde quem impera é o ideólogo Paulo Freire.